Esta sequência de cinco artigos explica os passos necessários a dar vida à auto-execução ecossistémica e autónoma (i.e., não-custodial) da Res Digitales.
Como já vimos nos três artigos anteriores (os quais podem ser encontrados aqui e aqui), todos os passos legais que assentem em informação interna ou externa juridicamente válida são passíveis de ser incluídos na autoexecução ecossistémica não-custodial, melhor dizendo, em Smart Legal Contract. Tal é absolutamente essencial para dar vida à Res Digitales.
Como também já aqui referi, a conveniência da tokenização e a eficácia da autoexecução criam valor económico com transacções extraordinariamente eficientes, aliada ao facto de estas serem executadas garantidamente para todos os intervenientes da relação contratual sem necessidade de intervenção seja de quem for, traduzindo-se assim em confiança acrescida no mercado.
Porém, para que a Res Digitales possa tornar-se uma realidade, é preciso garantir a aceitação legal do direito quando executado pelos Smart Legal Contract, ou seja, de forma não-custodial. Este é um grande desafio para qualquer ordenamento jurídico, pois, até hoje, não havia forma de poder aceitar a execução de programas informáticos com impacto nos direitos de pessoas jurídicas sem um guardião responsável pela aplicação da lei. É, por exemplo, o caso de um banco a executar uma transferência ou um arresto numa conta bancária, pois é esta entidade que valida qualquer uma destas operações pela aplicação das letrinhas miudinhas dos contratos financeiros.
Estamos a viver a época do “li e aceito”, pois é assim que a lei actual valida a automatização do acordo entre partes, a qual inclui a execução de programas informáticos. Ora, esta validação assenta que nem uma luva às DLT devido à natureza transparente dos Smart Legal Contract. Aliás, a visão já aqui discutida para o futuro dos mesmos em Inglaterra, considera essencialmente o acordo entre as partes para validar juridicamente a execução autónoma do código informático. Porém, nem tudo pode passar pelo “li e aceito”, pois, o nosso ordenamento jurídico (e.g., o código civil) em particular, é profícuo na definição a priori da lei que tem de ser cumprida, e por quem.
Ou seja, não basta que as entidades acordem num clausulado cujas transacções vão ser automatizadas sem a intervenção de ninguém, pois há elementos legais que são alheios à sua própria vontade. Felizmente, este é um problema com solução, o qual vamos abordar no quinto e último artigo desta série. Não obstante, há que contar com a possibilidade de se ter de reverter os passos da auto-execução transaccional em qualquer situação.
A reversibilidade dos Smart Legal Contract
Mas então, o que acontece quando algo de inesperado tiver lugar, e que possa ter impacto em transacções já executados obrigando no limite à sua anulação? Será que a informática pode simplesmente reverter o processamento? Infelizmente não é assim tão simples, pois nem todas as operações são biunívocas. Por exemplo, quando um bem troca de mãos, é sempre possível desfazer a operação, mas quando os recursos são consumidos no contexto de um serviço, não é possível desfazê-lo dada a sua natureza temporal e/ou intangível, isto porque, ao contrário de um produto, um serviço é sempre consumido no acto da sua criação.
Felizmente, este é um problema que o nosso ordenamento jurídico já sabe resolver, sendo tudo uma questão de o conseguir pôr em prática de forma não-custodial. É que, no nosso ordenamento jurídico, podemos valorizar o intangível sob forma de indeminização.
Consequentemente, a reversibilidade das transacções também pode ser aplicada, tal como nós a conhecemos hoje, à Res Digitales, permitindo que todos os passos executados com direitos sobre bens tangíveis ou intangíveis legalmente registados possam ser revertidos juridicamente. Os tribunais continuarão assim ocupar o seu devido lugar no ordenamento jurídico, apenas necessitando de se adaptar à nova realidade, o que será tema para futura reflexão.
Já na Common Law (i.e., o ordenamento jurídico dos países anglo-saxónicos), a solução é naturalmente diferente devido ao regime de propriedade com origens feudais em vigor e que pode dificultar a aplicação da solução aqui vislumbrada, mas com vantagens na forma como define o direito de propriedade e que pode facilitar significativamente outro tipo de abordagem. Vou, no entanto, deixar essa discussão para outra reflexão.
Em suma, a partir do momento em que toda a informação nos Smart Legal Contract é certificada de uma forma semelhante ao que hoje já acontece com as assinaturas digitais qualificadas e com a identificação auto-soberana, incluindo as pessoas jurídicas, os bens, e os direitos cujo articulado é passível de programação informática, já só faltará garantir a validade jurídica do processamento em causa, o que vai ser objecto do último artigo desta série dedicada a explicar a Res Digitales.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.