Os temores de uma expansão fiscal exagerada não fazem parte só das análises das contas dos países em desenvolvimento. Os governos de todo o mundo, especialmente os das nações desenvolvidas, saíram da pandemia de covid-19 bem mais endividados do que estavam antes e as estratégias de enfrentamento dos efeitos econômicos da guerra na Ucrânia só fizeram acrescentar mais camadas de preocupação.
A última edição do “Monitor da Dívida Global”, elaborado pelo Instituto Internacional de Finanças (IIF) apontou que a dívida global aumentou US$ 10 trilhões no primeiro semestre de 2023, para um patamar de US$ 307 trilhões. Isso é simplesmente um valor US$ 100 trilhões mais alto que o observado uma década antes.
E nada menos que 80% da acumulação dessa dívida veio do mundo desenvolvido, com Estados Unidos, Japão, Reino Unido e França à frente.
Defesa e transição energética
Como se chegou a esse ponto? Marcos De Marchi, economista chefe da Oriz Partners, lembra que, depois da pandemia houve o advento da guerra entre Ucrânia e Rússia, que teve como efeito indireto uma pressão para que os governos aumentassem seus orçamentos com a área de Defesa.
“Isso é algo que está sendo contratado agora e que dificilmente vai recuar”, previu, destacando que esse é caso claro da Europa, que se viu obrigada a inflar seu gasto militar – e isso aumenta naturalmente o déficit.
O segundo ponto citado por ele, que também está ligado às consequências da guerra, é que a Europa vai precisar se acostumar a viver sem o petróleo e sem o gás russos, o que eleva os dispêndios públicos para a transição energética. “Os governos europeus estão gastando mais para buscar fontes de energia novas, subsídios e incentivos fiscais nesse sentido. Então isso também aumenta o gasto fiscal”, explica.
Por último, existe um ponto que está mais relacionado aos Estados Unidos, que é a questão da geopolítica, devido à disputa pela liderança tecnológica. Entre outras coisas, isso tem feito o governo americano adotar uma estratégia de subsidiar o retorno de algumas produções internas, especialmente do que é considerado estratégico.
“Se pegar boa parte das medidas fiscais do governo Joe Biden, tem muita coisa que é para estimular o investimento doméstico nesses segmentos e também na transição energética”, detalha Marchi.
O economista conclui que tudo isso não só infla o fiscal, como dificilmente a conjuntura vai permitir que aconteça uma grande reversão pela frente. “Na verdade, parece que é algo que se contrata meio que estrutural por um bom tempo”, estima, destacando que até a Alemanha, que “segurava o bastão do fiscal controlado e tentava impor essa agenda para todo o bloco”, é um dos países que mais gastam hoje – seja por conta da defesa, seja por conta da transição energética.
“A Alemanha saindo dessa disciplina fiscal faz com que os demais países do bloco sejam até menos disciplinados do que eram anteriormente”, disse.
Sobre esse ponto, é bom lembrar que, pelos termos do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) da UE, os Estados membros se comprometeram a manter os seus déficits e dívidas abaixo de certos limites: o déficit orçamentário por exemplo, não pode exceder 3% do seu produto interno bruto (PIB), enquanto a sua dívida pode ficar acima de 60% do PIB.
Mas as seguidas crises desencaixaram essas contas: a média dos déficits públicos na zona do euro bateu nos 7,1% em 2020, recuando para 5,2% do PIB e chegando a 3,6% em 2022. Enquanto isso, o endividamento foi a 97,2% em média no primeiro ano da pandemia e recuou lentamente desde então: para 94,7% em 2021 e 91,0%, em 2022.
E a melhora tem sido lenta. Segundo os dados mais recentes do Eurostat, a dívida dos governos da área da moeda comum europeia no segundo trimestre de 2023 estava em 90,3% do PIB, com Grécia, Itália, Espanha, Bélgica, França e Portugal ainda acima da faixa do 100% do PIB. O déficit, em média, estava em 3,3% do PIB ao final do segundo trimestre.
Expansão nos EUA
Luiz Cezario, economista chefe da Asset 1 Investment, também observa um movimento sincronizado de forte expansão fiscal e monetária desde o início da pandemia, em 2020, tanto nos países desenvolvidos como na maioria dos emergentes.
“Para 2024, avaliamos que a economia americana manterá um déficit fiscal elevado, na ordem de 6% do PIB. Apesar das negociações políticas entre democratas e republicanos ocorridas neste ano para evitar o ‘shutdown’ do governo terem resultado em uma expectativa de expansão mais moderada dos gastos discricionários, nossa avaliação é que a política fiscal americana permanecerá expansionista, pressionada com as despesas previdenciárias e com o sistema de saúde”, afirma
Cezario também vê como provável que os programas de incentivos tributários para investimentos na economia verde comecem a ter maior impacto sobre a arrecadação do governo federal. “Outra despesa que continuará crescendo em 2024 é o gasto com pagamento de juros, devido ao endividamento crescente do governo americano. Os gastos com defesa também devem seguir em alta por conta dos conflitos geopolíticos atuais”, completa.
Para a zona do euro, a expectativa do economista da Asset 1 é que ocorra uma redução moderada do déficit fiscal, para um patamar ao redor de 3% do PIB. “A política fiscal europeia será moderadamente contracionista em 2024, contrastando com uma política fiscal ainda expansionista nos EUA”, compara.
Pelos seus cálculos, o déficit fiscal americano como proporção do PIB será cerca do dobro do europeu, o que indica que os EUA terão um grande desafio pela frente para conseguirem fazer o ajuste fiscal necessário ao longo desta década.
Aliás, na semana passada, a União Europeia fechou um acordo que vinha sendo gestado há meses para que os governos do bloco consigam reduzir os déficits orçamentário e a dívida pública. Embora tenha sido traçados limites após anos de gastos livres, muitos especialistas consideraram as novas regras lenientes.
Especialmente porque foi colocado um período de transição até 2027 para que todos alcancem a meta de, no máximo, 3% do PIB de déficit nos orçamentos anuais. Isso exatamente para salvaguardar os investimentos necessários o combate às mudanças climáticas e reforçar as despesas de defesa da Europa.
Já a China, segundo Cezario, enfrenta um cenário muito adverso, com problemas estruturais pesando sobre o crescimento potencial do país. Dentre eles, o excesso de investimentos feitos no setor da construção civil, o elevado endividamento das empresas estatais e dos governos regionais e o rápido envelhecimento de sua população.
“Diante deste cenário, o governo chinês tem implementado uma série de medidas para estimular a economia e, recentemente, anunciou que elevaria o déficit fiscal do país de 3,0% do PIB para 3,8% do PIB em 2023. Espera-se que o déficit fiscal chinês permanecerá acima de 30% do PIB em 2024”, projeta.
Baixa e média renda
Para países de renda baixa ou média, as dívidas soberanas são um problema ainda mais crítico. Segundo o “Relatório da Dívida Internacional do Banco Mundial” divulgado no último dia 13 de dezembro, em 2022, em meio ao maior aumento das taxas de juros globais em quatro décadas, os países em desenvolvimento gastaram um valor recorde de US$ 443,5 bilhões para custear o serviço de sua dívida externa pública e com garantia pública
Ou seja, o aumento dos custos desviou os já escassos recursos de setores essenciais como saúde, educação e meio ambiente. Os pagamentos do serviço da dívida – que incluem capital e juros – subiram 5% em relação ao ano anterior nesses países em desenvolvimento.
Segundo o Banco Mundial, os 75 países elegíveis para contrair empréstimos da Associação Internacional de Desenvolvimento (AID), que agrega os países mais pobres, gastaram US$ 88,9 bilhões em custos do serviço da dívida em 2022.
Além disso, ao longo da última década, esses países quadruplicaram seus gastos com juros, atingindo um máximo histórico de US$ 23,6 bilhões no ano passado. “A expectativa é que os custos globais do serviço da dívida dos 24 países mais pobres aumentem significativamente em 2023 e 2024, até um valor máximo de 39%”, informou o relatório.
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