“Um período de transição é aquele que se encontra entre dois períodos de transição”, George Stigler, Economista, Nobel 1982
Após um ano repleto de desafios complexos para o mundo, para a Europa e, consequentemente para Portugal, 2024 aponta para uma espécie de ano de transição. Isto apesar de existirem muitas questões sobre que tipo de transição poderemos esperar.
Por exemplo, sem dúvida que são visíveis vários sinais de que, economicamente, a batalha da inflação estará finalmente a ser vencida, e que muito provavelmente os bancos centrais poderão começar a colocar a perspetiva de descida de taxas de juro no seu discurso em 2024, o que significa que menores encargos para famílias e empresas. Mas este não será um processo suave e contínuo desde janeiro, até porque persistem algumas dúvidas.
Estará a guerra contra a inflação efetivamente ganha? E com que custo para as economias mais fragilizadas, como a portuguesa? Quanto tempo mais irá durar o conflito na Ucrânia, e quais as consequências de um prolongamento indefinido do mesmo? Poderão as eleições nos EUA e na Europa, para o Parlamento Europeu, ser definidoras em termos da afirmação do sentimento anti globalista e protecionista? E como se pode posicionar Portugal em termos de agenda, num ano em que se realizam importantes eleições legislativas?
2023 foi um ano de grande exigência em diversas frentes
2023 foi um ano repleto de desafios. A nível geopolítico tivemos um agravamento das tensões mundiais, com a guerra na Ucrânia a entrar no segundo ano após a invasão de fevereiro de 2022, enquanto no Médio Oriente o ataque terrorista do Hamas em Israel no início de outubro reacendeu o conflito, sobretudo na Faixa de Gaza.
A nível político e social continuaram a acentuar-se tendências de elevada polarização e erosão dos partidos moderados tradicionais. Neste âmbito, a Península Ibérica esteve politicamente em destaque. As eleições em Espanha, das quais resultou um acordo com partidos independentistas da Galiza, Catalunha e País Basco, foram marcantes do ponto de vista da polarização e fragmentação política que existe atualmente no Velho Continente, onde as tensões sociais continuam também a ser cada vez mais evidentes – a reforma das pensões em França, durante a primeira metade do ano, gerou fortes protestos num ano em que a desigualdade nos países desenvolvidos também aumentou.
A queda do governo de maioria absoluta em Portugal, na sequência de diversas investigações judiciais que atingiram a cúpula do governo é, sem dúvida, um dos destaques na Europa em 2023, tendo em consideração o atual enquadramento de fragmentação do centro político europeu.
A inflação abrandou, mas com custos elevados para as economias, na medida em que as taxas de juro vão permanecer em máximos históricos para controlar os preços, com um impacto recessivo sobre as condições de consumo das famílias e da atividade das empresas. Ainda assim, o desempenho de 2023 acabou por ser melhor que o esperado.
Há um ano, as principais previsões dos observadores apontavam para um crescimento global de cerca de 2% para 2023. Neste momento, a expectativa é de que cresça 2,8%, o que significa que a economia mundial terá crescido quase 50% mais do que era antecipado inicialmente. Adicionalmente, as empresas têm conseguido manter níveis operacionais assinaláveis, graças a eficientes políticas de fixação de preços e à gestão adequada de balanços, que mantiveram, no geral, o nível dos custos financeiros controlados.
Por último, os governos também foram conseguindo impor políticas fiscais acomodatícias que permitiram mitigar o impacte elevado das agressivas subidas das taxas de juro durante o último ano.
Inflação ainda por controlar em 2024, mas economia mostrará os primeiros sinais de esperança
Apesar dos primeiros sinais de que a inflação pode estar mais perto de ser controlada, as economias deverão registar algumas leituras de recessão ainda durante algum tempo, até que o processo de resiliência fique consolidado.
Isto é verdade nas economias desenvolvidas, mas sobretudo na Europa, onde a manutenção durante mais alguns trimestres de taxas elevadas com restrições de acesso ao crédito vão continuar a condicionar a atividade. Acresce que os principais bancos centrais do mundo desenvolvido, como é o caso do Banco Central Europeu (BCE), têm deixado claro que a desaceleração económica é um “mal necessário” para que a inflação possa estar definitivamente normalizada.
Na Europa, esta questão ganha especial relevância. Apesar dos progressos significativos – a inflação esperada para 2024 poderá ficar em 2,8%, metade da leitura esperada este ano, de 5,6% – o crescimento será ainda muito residual durante boa parte do ano, ou seja, abaixo dos 0,5% registados em 2023, de acordo com a maior parte das estimativas. Em suma, durante boa parte do ano continuaremos, na Europa, em risco de recessão, sobretudo durante o primeiro semestre.
A estagflação é um risco e poderá haver a tentação dos países mais sensíveis a estes riscos – caso de Portugal – de implementarem medidas fiscais agressivas para contrariar a recessão e, desta forma, se colocarem na linha de tiro relativamente à sustentabilidade das emissões de divida soberana.
No entanto, há razões para acreditarmos que a segunda metade de 2024 poderá contar uma narrativa diferente e acabar por moldar o próximo ano como um ano de transição favorável para a economia.
Por um lado, economias de grande relevo como a China, poderão voltar a contribuir para aumentar a procura mundial, e os EUA também deverão contribuir para a melhoria do sentimento generalizado, seja pela resiliência do consumo e do mercado de trabalho, seja pelos sinais que a Reserva Federal tem vindo a dar de que irá descer novamente as taxas ao invés de subir de novo os custos do dinheiro. Por outro lado, e porque também a inovação – como é o exemplo da Inteligência Artificial – pode vir a ter um papel de destaque na produtividade das empresas em 2024, ajudando assim a aumentar a produtividade e a resiliência nos diversos sectores privados e públicos.
Incerteza e expectativas cautelosas marcam geopolítica
A incerteza ligada ao sucesso do combate à inflação condicionará durante algum tempo o sentimento e as expectativas relativamente a 2024. Mas não será o único fator restritivo. Os fatores políticos e geoestratégicos terão também de ser tidos em conta durante o próximo ano. Por um lado, o cenário geopolítico mudou no mundo e, na Europa, regressaram os conflitos militares no Leste europeu, que prometem redesenhar o formato da União Europeia e também a forma como o mundo se relaciona entre si.
Esta nova espécie de “cortina de ferro” já moldou a forma como o mundo ocidental via a cooperação entre nações e blocos, assim como o modo como era percecionado o investimento em segurança militar – a NATO por exemplo, que de instituição obsoleta e sem propósito visível, voltou a ser considerada crucial para a defesa do modo de vida e da democracia ocidentais.
Ao mesmo tempo, teremos um conjunto de eleições relevantes pelo mundo, que poderão mudar atores e equilíbrios de poder, daí resultando alterações estruturais a nível global. Nos EUA teremos eleições presidenciais e na Europa eleições para o Parlamento Europeu, mas outros países há, a Índia, por exemplo, que podem trazer alterações com implicações que transcendem as suas fronteiras.
O que é comum em muitos destes momentos eleitorais é a crescente polarização política – seja entre soluções mais progressistas versus conservadoras –, tendo um impacte significativo na forma como, a partir de 2024, se poderão encarar os grandes compromissos desta década, sobretudo os que exijam cooperação internacional.
Com os governos pressionados a manter estímulos fiscais, e ainda com as taxas de juro em níveis elevados, os prémios de risco das dívidas soberanas poderão subir de forma relevante, pelo menos enquanto subsistir a incerteza relativamente à política monetária. À medida que se forem dissipando os receios geopolíticos e económicos, também a confiança poderá ganhar uma tonalidade mais amigável.
Um ano de transição com consequências estratégicas para Portugal
A economia global está a percorrer o seu caminho de redenção, mas ainda levará algum tempo até que possa materializar-se. Na Europa, o cenário deverá manter-se mau antes de melhorar, uma vez que ainda estamos longe dos critérios de estabilidade de preços do BCE. O que significa que Portugal ainda poderá ser um dos países onde famílias e empresas continuarão a ser mais afetadas pelos custos mais elevados com financiamento e consequente impacte no custo de vida. Um cenário que pode alimentar mais a atual incerteza política nacional e as eleições legislativas inesperadas, na sequência da crise institucional, alimentando o voto eurocético e antissistema nacional.
Esta tendência não é exclusiva de Portugal e as eleições europeias também podem trazer uma configuração ideológica ao Parlamento Europeu mais exigente em termos de suporte às políticas de coesão europeias. Estes são fatores que criarão um exigente cenário para Portugal, que para além da sua fragilidade estrutural em termos de exposição económica durante boa parte do próximo ano, terá de lidar com potenciais perdas de relevância no seio da política de coesão europeia – seja pelo foco a Leste, na Ucrânia, seja pelos resultados eurocéticos por via das eleições europeias.
O ano de 2024 trará, provavelmente, melhores notícias no último trimestre do ano, a par de uma transição relevante em termos de ecossistema de vida e das nações. Sobretudo na Europa, e com inevitáveis consequências estratégicas para Portugal.